David Curp
Professor Assistente de História na Ohio University, onde leciona História contemporânea da Europa Oriental e dos Bálcãs. Atualmente está terminando um livro sobre faxina étnica na Polônia pós-guerra.
Artigo publicado em Crisis Magazine, 1 de novembro de 2005 e republicado em 10 denovembro de 2009.
Tendemos a superestimar a atual superioridade militar, econômica e tecnológica do Ocidente relativamente ao mundo islâmico e projetá-la a séculos passados. Com o luxo de ter o conhecimento da História depois que ela já aconteceu, muitos historiadores ocidentais olham para o passado em direção à expansão do Islã no contexto de um Império Bizantino decadente, colocando as Cruzadas medievais como uma prequela ao moderno imperialismo ocidental e como paroxismos de fanatismo religioso cristão.
Os ideais cruzadistas no Ocidente foram uma resposta à enorme ameaça da jihad (N.T.: luta ou esforço para implantação do Islã). Elas foram deflagradas por medo e por necessidade, num conflito desesperado contra o Islã, conflito este que os cristãos vinham perdendo ao longo de vários séculos – e eles estavam cientes de que estavam perdendo. A extensão das vitórias do Islã pode ser vista no desaparecimento quase total das comunidades cristãs outrora prósperas na África setentrional, Oriente Médio e Ásia Ocidental, bem como nos Bálcãs, onde o Islã ainda tem raízes profundas. Os Balcãs constituem-se em região cujo próprio nome foi imposto pelo imperialismo turco bem sucedido, do final da Idade Méda.
O Islã é uma religião notavelmente bem sucedida, a qual inspirou seus seguidores a gerar criativamente as precondições frequentemente conflituosas da guerra, política imperialista e zelo missionário, durante a maior parte de sua existência. Projetar a atual liberdade de ação dos países ocidentais ao passado (N.T.: por parte do Ocidente) distorce seriamente a história e o drama da fraqueza ocidental contínua, que levou a quase destruição da Cristandade. O apelo emocional dos protestos do Islã radical contemporâneo contra o Ocidente não é nutrido primariamente por um vitimismo enlutado, mas sim por uma lembrança muito forte de como a vitória final do Islã sobre a Cristandade tem permanecido como uma possibilidade real por um tempo tão longo. Os triunfos muçulmanos nos primeiros séculos do islamismo formaram os alicerces que embasam os temores da Cristandade bem como da confiança do Islã em si mesmo.
A ASCENÇÃO DO DAR AL-ISLAM
Diferentemente do Cristianismo, que começou à margem da vida política e social do mundo romano e lá permaneceu por séculos, o Islã rapidamente atingiu sucesso mundial. No espaço de um século da morte do profeta Maomé, seus seguidores já haviam conquistado a maior parte da metade meridional do mundo mediterrâneo. Os exércitos muçulmanos avançaram a partir da Península Arábica até a França meridional, a oeste; ao norte dos distritos fronteiriços de Constantinopla, a maior cidade da Cristandade. E mais além ao Oriente, às antigas civilizações da Pérsia, Índia e fronteiras mais orientais da China.
Nos primeiros séculos do Islã, os estudiosos e juristas muçulmanos compreenderam que o mundo se dividia do ponto de vista religioso e político entre Dar al-Islam, ou Casa da Paz, e Dar al-Harb, a Casa da Guerra (N.T.: as traduções dos termos Islã e Harb não devem ser tomadas literalmente; o termo Islã pode ser interpretado como ‘paz através da submissão’, enquanto que o termo Harb pode ser interpretado como ‘lugar onde deve prevalecer a guerra até o estabelecimento do Islã’). Enquanto que tréguas entre sociedades islâmicas e não-islâmicas eram aceitáveis, o Alcorão ensinava que estas deveriam ser limitadas em duração. Ao final, nenhuma paz permanente entre muçulmanos e não-muçulmanos era possível até que todos os não-muçulmanos se submetessem ao domínio muçulmano e o Dar al-Islam abrangesse todo o mundo. Jihad, seja na forma da ‘jihad maior’ (a luta que todos os muçulmanos devem travar contra o pecado) ou a ‘jihad menor’ (a luta armada contra não-muçulmanos), deveria ser integral para trazer a plenitude e a unidade a um mundo dividido.
As conquistas iniciais do Islã foram aterrorizantes pelo seu poder e velocidade. Elas golpearam o mundo mediterrâneo em uma época na qual guerra e rixas domésticas tornavam impossível compor uma frente comum contra a expansão árabe muçulmana. Ferrenhas disputas doutrinárias entre cristãos e uma guerra demasiadamente exaustiva contra os persas, deixaram a única real potência cristã – Bizâncio – despreparada para enfrentar uma jihad assustadoramente efetiva. Os vários pequenos principados cristãos e pagãos na África setentrional e na Espanha – tal como o dos enfraquecidos persas zoroastristas – estavam menos aptos ainda para enfrentar os exércitos muçulmanos.
A fraqueza cristã e persa, bem como o sucesso do Islã em conquistar militarmente grandes extensões territoriais e colocá-las sob seu controle, produziram uma gama de reações entre cristãos e muçulmanos. No Ocidente, particularmente na Espanha, a presença da religião muçulmana deixou surpreendentemente poucos traços nos esparsos documentos cristãos referentes ao primeiro século após a conquista. Parece que a maioria dos cristãos aceitou seus novos senhores muçulmanos com equanimidade. De fato, muitos descobriram que o colaboracionismo com os governantes ligados ao ‘mercado comum’ Dar al-Islam, estendendo-se da Espanha até a cordilheira do Hindu Kush na Índia (atual fronteira entre Afeganistão e Paquistão) era mais lucrativo do que resistir à nova classe governante, cujas demandas inicialmente não eram onerosas e cujo poder militar era invencível.
Os documentos espanhóis mais antigos que tratam da presença muçulmana como um problema religioso correspondem aos trabalhos de São Eulógio, escritos mais de um século após a conquista, isto é, em 850. O seu Liber Apologeticus Martyrum, escrito para outros cristãos da Espanha, defendia a santidade dos mártires cristãos (‘os 40 mártires de Córdoba’), os quais haviam sido recentemente executados por denuciar publicamente o Islã e o seu profeta. Eulógio, que em breve seria ele mesmo morto pelas autoridades muçulmanas por defender os mártires, respondia a objeções cristãs de que aqueles que os muçulmanos tinham executado não eram mártires porque haviam “sofrido nas mãos de homens que veneravam a Deus e à lei”. Isto ilustra o quão profundamente os cristãos espanhóis estavam submetidos ao domínio islâmico. Eles definiam tanto os muçulmanos quanto suas relações com o Islã, inteiramente em termos islâmicos.
A resistência franca (N.T.: nação de origem germânica, precursora da atual França) derrotou uma grande invasão árabe em Tours em 732 DC. Porém foi tanto sua pobreza quanto suas armas, bem como as crescentes divisões dentro do próprio Dar al Islam,que defenderam os cristãos ao norte dos Pirineus (cadeia de montanhas entre a França e a Espanha) da incorporação ao mundo muçulmano.
Para a maior parte dos cristãos no Oriente, entretanto, a expansão e estabilização iniciais do Islã foram um desastre não-mitigado – agravado pela agressão muçulmana contínua ao longo do século VIII. Começando no século VII, os bizantinos asseguraram sua fronteira terrestre oriental, consideravelmente reduzida, através de uma série de drásticas reformas militarizantes, que tornaram uma grande parte do império em um estado-guarnição. Apesar do fato de que seus vizinhos muçulmanos carecessem de unidade para promover ataques de porte, a pressão constante de invasores muçulmanos buscando escravos e butim – bem como a ameaça igualmente permanente da pirataria árabe pelo Mediterrâneo – impeliram Bizâncio a permanecer em permanente estado de guerra.
Bizâncio perdurou através destes séculos de conflito e promoveu um marcável florescimento de sua cultura, tanto domesticamente quanto no exterior. Os missionários, artistas, professores e soldados de Bizâncio expandiram a influência cultural, religiosa e política de seu império nos Bálcãs e na Ucrânia meridional. Fato ainda mais notável, considerando que este reavivamento aconteceu à sombra das três espadas cada vez mais pesadas de Damocles (N.T. figura de linguagem que expressa um perigo constante). As duas primeiras correspondiam à criação propriamente dita de Bizâncio, forjada pelo peso de uma guerra de sobrevivência: sua própria política interna despótica e fraturada, bem como suas relações torturadas e por vezes hostis com outros cristãos – tanto igrejas cristãs mais antigas ao Oriente e Ocidente como povos recentemente cristianizados, evangelizados pelos seus missionários ao norte. Seu credo na missão de seu império não só levou os bizantinos a considerar o seu estado como o centro político da Cristandade, porém também produziu uma arrogância imperial que minou a habilidade do império em cooperar efetivamente com outros cristãos. Estes dois fatores tiveram seu perigo aumentado pela terceira e mais imprevisível das ameaças: o comprometimento permanente dos muçulmanos com a jihad.
A CALMARIA ANTES DA TEMPESTADE
No Dar al-Islam os bizantinos enfrentavam um inimigo que constante, mesmo que às vezes de modo esporádico, renovava seu compromisso com a jihad. O mundo muçulmano se fortalecia com os povos da Ásia, bem como com o seu amplo acesso à mão-de-obra escrava na Ásia e África, mais rápidamente do que Bizâncio era capaz através de suas relações com seus correligionários. A expansão original e vasto alcance do Dar al-Islam provia o Islã com o poder necessário para se recuperar do período de fraqueza e divisão que sobreveio após sua fundação. Bizâncio, por outro lado, não possuía alianças tão consolidadas.
O século X é frequentemente considerado um ponto baixo na expansão islâmica e no entusiasmo jihadista, bem como uma época de reavivamento bizantino ao mesmo tempo em que o império se recuperava de um século de ataques constantes e se engajava em uma modesta reconquista de alguns de seus territórios. Ainda assim, mesmo este ‘ponto baixo na expansão islâmica’ viu o desenvolvimento de um corpo inteiro de teologia e literatura litúrgica jihadista compatíveis com iniciativas de mesma natureza. Ghazis, ou guerreiros muçulmanos sagrados, promoveram numerosos ataques em território bizantino naquele século. Também internacionalizaram de forma bem sucedida sua luta anti-bizantina, cooptando outras pessoas no seu esforço ‘defensivo’ em promover conquistas muçulmanas preemptivas e em manter Bizâncio limitado a fronteiras facilmente atacáveis.
O século começou com um espetacular sucesso muçulmano: o saque árabe da segunda maior cidade de Bizâncio, Tessalônica, em 29 de julho de 903, quando foram escravizados 30.000 cristãos. Em 931, grupos de assalto muçulmanos alcançaram Ankuriya (a moderna Ankara), avançando profundamente em território bizantino, tomando cativos outros milhares de cristãos. Ribats, estabelecimentos muçulmanos que eram em parte mosteiro e em parte fortaleza, floresciam ao longo de toda a fronteira da Síria setentrional e Anatólia meridional. Estes lugares serviam como bases de onde ghazis, que vinham de diversos lugares, até tão distantes quanto a Ásia central, viajavam para juntarem-se aos grupos de assalto contra os cristãos, considerados pelos muçulmanos como ‘politeístas’.
Escritores muçulmanos utilizavam os contra-ataques bizantinos para inflamar a opinião muçulmana e procuravam trazer um reavivamento religioso e maior comprometimento muçulmano com a jihad. O maior pregador muçulmano, Ibn Nubata al-Fariqi, desenvolveu um ciclo inteiro de sermões que se tornaram o modelo para este tipo de literatura por séculos e que mais tarde inspiraria Saladino. Em sermões que antecipavam a terna garantia de proteção divina com a qual o Papa Urbano impregnaria os cruzados um século mais tarde, Ibn Nubata constantemente exortava os ghazis a assumirem a causa da jihad. Veja esta passagem, por exemplo, citada no livro ‘Os Cruzados: Perpectivas Islâmicas‘ de Carole Hillenbrand (Routledge, 2000):
Você acha que Ele o desprezará enquanto você O ajuda, ou você imagina que ele o deserdará enquanto você está firme no caminho Dele? Certamente não!… Então vista – que Deus tenha misericórdia de você – pela jihad, a cota de malha do crente e equipe-se com a armadura daqueles que confiam [em Deus].
Se, como alguns estudiosos (como Hillenbrand) argumentaram, este foi o ponto baixo dos ideais jihadistas entre os muçulmanos, mesmo tal declínio foi suficiente para estirar as defesas de Bizâncio a forçá-la a manter uma guerra permanente. Também lançou sementes que floresceram nos séculos 11 e 12 no Dar al-Islam. A jihad provou ser uma enorme árvore no jardim do Islã.
O FIM DO COMEÇO
No Dia da Ortodoxia (N.T.: um dia festivo no calendário da Igreja Ortodoxa) – 13 de março de 1071 – o imperador bizantino Romano IV liderou um dos maiores exércitos que Bizâncio havia reunido em séculos para fora de Constantinopla. O objetivo de Romano era terminar os ataques turcos contínuos que lentamente fustigavam as defesas no coração do Império Bizantino e de um dos centros mais antigos e ricos da vida cristã: a Anatólia. Apesar de conhecermos esta região atualmente como Turquia, no século 11, a Anatólia era um território proeminentemente cristão. O triste destino da campanha de Romano era o da recriação e renomeação de Anatólia.
Desde o início da Antiguidade, a posição da Anatólia, de encruzilhada ente a Europa e a Ásia, a tornou uma das partes mais ricas e mais intensamente urbanizadas do mundo mediterrâneo. Era uma região diversificada, contendo grandes comunidades gregas bem como frígias, capadocianas, celtas na região de Galácia, armênios e judeus, entre outros. Neste cadinho urbanizado de povos – que incluía Tarso, a cidade natal de São Paulo – o Cristianismo se disseminou rapidamente.
Os nomes de um número de cidades na região, se não suas histórias subsequentes, são especialmente famiiares àqueles conhecedores do livro de Revelações: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sárdis, Filadélfia e Laodicéia. Parece que o chamado de arrependimento registrado pelas revelações de São João se provaram bem sucedidas no início da metade do século 2, porque estas bem como outras igrejas, experimentaram um Cristianismo urbano intenso e vibrante, bem como promoveram iniciativas missionárias frutíferas. Na Anatólia, a transição do Paganismo para o Cristianismo foi mais branda do que em outros lugares do mundo romano. A riqueza, bem como as profundas raízes cristãs da região, indicavam Constantinopla como o lugar de refundação do Império Romano do Leste. À altura dos séculos 10 e 11, Anatólia era o lar de oito a dez milhões de pessoas, incluindo dezenas de milhares de refugiados do Dar al-Islam – a maior parte deles cristãos, porém alguns muçulmanos.
Ironicamente, o povo que conquistou esta região em nome do Islã, os turcos seljúcidas, converteram-se pacificamente a esta religião apesar de não terem experimentado os milênios da cultura elevada que os separava dos povos de Anatólia. A conversão ao Islã dos povos turcos nômades e beligerantes da Ásia Central começou nos séculos 8 e 9. Eles começaram a migrar ao Oriente Médio nos séculos 10 e 11. Foram estes povos que esmagaram o poder militar bizantino em 1071 e que portanto deflagraram as Cruzadas. Eventualmente liderados pela casa de Osman – isto é, otomanos – os povos turcos completaram a conquista de Constantinopla e criaram um império e um califado sobre as ruínas de Bizâncio que durou até 1924. Os seljúcidas e os otomanos portaram os estandartes do Islã mais profundamente dentro da Cristandade do que qualquer outro já houvera alcançado anteriormente.
Os turcos, tal como os primeiros muçulmanos árabes, combinavam a devoção de convertidos entusiastas com sua determinação de lançar guerra pelo Profeta e por lucro. Convertidos por missionários sunitas, estes imigrantes turcos foram arrebatados pelo poder (e tentados pela riqueza) da heterodoxa e eclética Shia (xiítas) que dominava muito da vida política do Oriente Médio à época. Aos olhos dos tribalistas turcos, dentre muitas das falhas da sociedade islâmica de sua época, havia a tolerância relativamente maior em relação a cristãos e judeus que viviam entre muçulmanos ou que vinham como peregrinos aos lugares santos – bem como uma jihad menos comprometida contra os bizantinos.
Os turcos objetivaram então acabar com este problema de três formas:
- Lutar contra o xiismo heterodoxa dentro do Dar-al-Islam
- Ampliar a perseguição contra cristãos, especialmente peregrinos vindos aos Lugares Sagrados localizados dentro do Dar-al-Islam
- Jihad vigorosa contra Bizâncio
Os constantes sangramentos ao qual o império turco foi submetido, tanto por parte de muçulmanos quanto de seus inimigos cristãos bizantinos, bem como o fato de estes últimos terem buscado e conseguido este objetivo quase simultaneamente, são testemunhos da pujança bélica turca.
As disciplinas da vida nômade, com sua ênfase em cavalaria e arco e flecha de montaria, tornaram os turcos esmagadoramente eficazes em ataques de assalto e na guerra. Os ataques de assalto dos seljúcidas na Armênia, que começaram na década de 1020, devastaram este país e iniciaram especulações entre os príncipes e sacerdotes armênios de que o fim do mundo estaria próximo. O que tornou estes ataques de assalto especialmente difíceis de rechaçar era o seu caráter constante, muito embora avulso. As tropas de ataques de assalto operavam frequentemente de forma independente. Mesmo os tratados que os bizantinos negociaram com os príncipes turcos ou com o califa não eram capazes de conter estes militares de assalto que se consideravam ghazis e que, frequentemente, obtinham a aprovação verbal de seus senhores para promover seus ataques.
Estes ataques avulsos escravizavam milhares de cristãos anualmente, ameaçavam o comércio e a agricultura ao longo das fronteiras, além de fustigar as defesas armênias e bizantinas. Porém o pior ainda estava por vir. Alp Arslan (‘o Leão Valente’), príncipe turco que unificou os seljúcidas em 1063 e que eventualmente alcançou a grande vitória na batalha de Mantzikert (contra os bizantinos), promoveu ataques de assalto de tal brutalidade e escopo que os cronistas cristãos referiam-se a ele como o ‘bebedor de sangue’ e uma das forças do Anticristo.
Ele bem fez por merecer esta reputação. Mateus de Edessa, um historiador armênio, descreve o saque de Alp Arslan à cidade de Ani, a capital da Armênia em 1064 (próxima à atual Arpaçay), a qual as crônicas seljúcidas descrevem como ‘grande cidade florescente com 500 igrejas’:
O exército entrou na cidade, massacrou seus habitantes, pilhou e queimou-a à ruína, tornando prisioneiros todos os que escaparam do massacre e tomando posse dela. [O número de mortos era tamanho] que eles bloqueavam todas as ruas e não se podia passar sem andar sobre eles. O número de prisioneiros não foi menor do que 30.000 almas.
Eu queria entrar na cidade e vê-la com meus próprios olhos. Tentei encontrar uma rua através da qual não precisasse andar sobre corpos. Mas isso era impossível.
Os Anais dos Turcos Seljúcidas (N.T.: coleção de crônicas muçulmanas de autoria de Ibn al-Athir) que descreve uma série inteira de campanhas que Arp Arslan promoveu na Armênia naqueles anos – incluindo a destruição de numerosas cidades e monastérios – corrobora a história de Mateus de Edessa. Em palavras que expressam tão pouco remorso pelos custos da jihad quanto os cronistas (muçulmanos) das Cruzadas mostraram quando descrevendo a queda de Jerusalém, os Anais relatam:
Eles entraram na cidade e mataram mais habitantes do que se podia contar. Tantos que muitos muçulmanos não podiam entrar na cidade porque tantos corpos havia. Eles levaram cativos tantos quantos eles mataram.
As boas novas destas conquistas viajaram por estas terras e os muçulmanos se alegraram. O relato… foi lido em voz alta em Bagdá no palácio do califado e o califa publicou um édito louvando e abençoando Arp Arslan.
O saque de Ani provou ser a chave para Anatólia. Pelos próximos vários anos, Arp Arslan e outros militares turcos seljúcidas tornaram-se mais ousados em seus ataques, saqueando santuários importantes tais como o de São Basílio de Capadócia, e, em 1070, capturando Colossas, um local famoso por seu santuário do arcanjo (Miguel) (o qual os turcos prontamente transformaram em um estábulo).
E então, no ano seguinte, o Imperador Romanus liderou seu exército bizantino à batalha. Não correu bem para ele.
A batalha de Mantzikert foi uma das batalhas mais decisivas, e não obstante desconhecidas, do início da Idade Média. As forças de Arp Arslan destruíram o exército de Romanus, tomando o imperador ele próprio como prisioneiro. O pânico que tomou Bizâncio foi tão completo quanto a alegria no Dar-al-Islam, cujos exércitos haviam lutado contra Bizâncio por séculos sem terem alcançado tamanho sucesso. A derrota de Bizâncio tornou-se ainda mais terrível pelos esforços bem sucedidos dos rivais de Romanus em tomar o trono durante seu cativeiro. A curta porém terrível guerra civil que se seguiu após o retorno de Romanus, que reclamou o seu trono e queria pagar o resgate que ele havia negociado com Arp Arslan, fez com que os militares se concentrassem em Constantinopla. Como resultado, as defesas orientais de Bizâncio foram estilhaçadas e o império dividiu-se. Os turcos tiveram pouco trabalho em recolher os restos.
As guerras que se seguiram não foram uma conquista no sentido tradicional. Os turcos eram muito poucos em números para subjugar completamente esta região, um pouco menor do que o Texas e contendo milhões de cristãos. Ao invés disto, seus ataques contínuos por toda a Anatólia permitiram-lhes expulsar, escravizar ou empobrecer os habitantes da região, ao longo do tempo. Pelos 300 anos seguintes, a população decaiu a quase a metade, a despeito da contínua imigração muçulmana à região. A maior parte destes territórios, anteriormente férteis, tornou-se terra de pasto para os turcos ainda nômades, enquanto que muitas cidades tornaram-se em ruínas. Da mesma forma que a Espanha meridional seria devastada 500 anos mais tarde pela expulsão de sua população muçulmana, Anatólia tornou-se um deserto sob o jugo de seus novos senhores estrangeiros e religiosamente intolerantes. Além disto, a perda de Anatólia combaliu permanentemente Bizâncio. O despedaçado escudo oriental da Cristandade provou-se um alvo fácil para os ghazis do Dar-al-Islam contornarem e eventualmente despedaçarem nos séculos seguintes à batalha de Mantzikert.
Uma vez tendo os turcos terminaram com a Cristandade oriental, o portal para a conquista do restante da Europa estava aberto.
NOSSOS INIMIGOS, NOSSOS PROFESSORES
É lugar-comum alegar que os cruzados causaram cicatrizes no imaginário do mundo muçulmano por séculos. Nacionalistas e islamistas árabes modernos têm por vezes apontado para os cruzados como a fonte de visões anti-ocidentais no Oriente Médio, porém isto é simplesmente incorreto. Bernard Lewis, um dos mais destacados estudiosos ocidentais do Islã, demonstrou que a Cristandade ocidental permaneceu após as Cruzadas como um tema de relativamente pouco interesse para muçulmanos por séculos. Apesar das campanhas duramente promovidas pelos cruzados, a ignorância árabe e posteriormente turca acerca dos aspectos da geografia e cultura da Europa durante e após esta luta, mesmo os mais básicos, poderia fazer um moderno estudante de graduação enrusbescer. Por séculos, a Cristandade Ocidental permaneceu como uma área de fronteira para os muçulmanos, contra a qual eles continuaram a promover a guerra de forma bem sucedida, até quase o começo da era moderna. Além disto, a Europa despertou pouco interesse nestes últimos.
Desde o início, a Cristandade pagou um preço alto para se manter frente às jihads do Dar-al-Islam. As guerras que o Islã promoveu contra a Cristandade – e os contra-ataques desta – degeneraram em guerras notavalmente sujas que frequentemente conferiram poder aos piores impulsos em ambas as fés. Para os cristãos, estas lutas abriram uma caixa de Pandora de males: elas proporcionaram um ímpeto renovado ao anti-semitismo popular na Idade Média, bem como ajudaram a reforçar a participação cristã no comércio de escravos durante os séculos 15 a 16. Uma radicalização que tenebrosamente precedeu as discussões atuais nos Estados Unidos acerca do uso da tourtura como um meio legítimo de combater a ameaça jihadista.
De toda forma, os frutos da vitória do Islã frequentemente se estragavam. A tolerância intermitente, porém relativamente maior, que caracterizava as relações do Islã com outros ‘povos do livro’ do Oriente Médio, Espanha muçulmana e Bálcãs, não era a tolerância característica dos vitoriosos em seu triunfo. Mesmo em meio ao triunfo, entretanto, esta tolerância era misturada com desprezo. As pressões da jihad que deflagraram as Cruzadas ocidentais levaram os muçulmanos a abusarem de seu poder sobre seus súditos cristãos e judeus sob o Dar-al-Islam, em campanhas de conversão forçada, pogroms (N.T.: espécie de ‘arrastão’ saqueador e assassino) e outas brutalidades. Na era moderna, à medida em que o passo do avanço islâmico desacelerou e a maré começou a virar à favor do Ocidente, a tradição de tolerância do Dar-al-Islam também colapsou. A magnanimidade da vitória demonstrou ter sido uma experiência limitada demais para os muçulmanos estabelecerem a tolerância como parte chave de sua cultura religiosa.
Da mesma forma que a História natural mostra que Deus é particularmente fã de insetos, a História humana demonstra Seu deleite por paradoxos e por dialética. O terror da jihad deu origem ao zelo cruzadista no século 11, o qual ajudou a retardar o posterior avanço do Islã em direção ao ocidente. Em face às jihads cada vez mais bem sucedidas nos séculos 15 e 16, o Cristianismo por sua vez tornou-se mais agressivo e expansivo do que jamais fora. A Cristandade tornou-se bem sucedida em acumular poder e recursos através da colonização do hemisfério ocidental, comprometendo o status do Dar-al-Islam como intermediário no comércio com a Ásia e eventualmente quebrando o poder hegemônico do Islã na Eurásia. Entretanto, ao mesmo tempo em que a Cristandade experimentava seus maiores triunfos através da descoberta e colonização do Novo Mundo, os cristãos direcionaram suas próprias forças militarizadas domesticamente, em nome da segurança religiosa, ameaçada pela Reforma. Desta forma terminaram, não intencionalmente, minando esta mesma Cristandade, deixando uma Europa Ocidental secularizante como sequela.
Ironicamente, então, os sucessos das jihads islâmicas em última instância fortaleceram e construíram um Dar al-Harb mais resistente do que nunca ao avanço do Islã, à medida em que aliviaram os cristãos ocidentais do peso da continuidade de suas batalhas sob a forma de guerras. Enquanto que a jihad não é menos aterrorizante agora do que tem sido por séculos, diferentemente do passado, seu terror contínuo contém uma ansiedade e uma futilidade subjacentes, aos olhos de seus devotos. Esta impressão se assenta tanto na constatação acerca da inaptidão dos candidatos a ghazis modernos de utilizar qualquer coisa que seja, exceto o medo, para alcançar seus objetivos, bem como na subversão da unidade religiosa, social e política das fechadas sociedades muçulmanas, promovida pelo Ocidente secular.
Esperemos que o nihilismo e o isolamento da militância jihadista pressagiem a renúncia da violência sacralizada pelos fiéis muçulmanos. Tal desdobramento libertaria do bem-merecido estigma de brutalidade religiosa, todos aqueles que clamam pelo nome do Deus Único.
\Historia-Jihad Resumo Curp-Guerra sem fim
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