Artigo oriundo do blog Rainhas Malditas, desativado. Para acessar mais material sobre o tema escravidão islâmica, clique aqui.
Hoje sabemos que a miséria, a pobreza, a longa estagnação demográfica e os atuais atrasos de desenvolvimento do continente negro, não são o único fato das consequências do comércio triangular praticado por europeus ocidentais, como muitos imaginam, longe disso. Embora não haja graus de horror ou monopólio da crueldade, é seguro dizer que o comércio de escravos e expedições bélicas provocadas pelos árabes muçulmanos rumo a África negra ao longo dos séculos foram mais devastadoras que o comércio transatlântico europeu.
O doloroso capítulo da deportação dos africanos para as terras do Islã é comparável ao genocídio. Essa deportação não se limitou à privação de liberdade e trabalho forçado. Foi também – e em grande medida – um verdadeiro empreendimento programado do que poderia ser descrito como “extinção étnica por castração”. Sobre o assunto, muitos escritos testemunham o tratamento abominável que os árabes muçulmanos reservaram para os cativos africanos e também, do seu forte desprezo para com os povos de bilad as-Sudan (o País dos Negros). Assim e a este respeito, o historiador Ibn-Khaldum afirma: “as únicas pessoas a aceitar a escravidão são os negros, por causa de um menor grau de humanidade, sendo seu lugar mais próximo do estágio animal“, um julgamento que dispensa comentários. Muitos povos africanos se converteram ao islamismo, especialmente desde a chegada dos almorávidas. Essa conversão, todavia, não os preservou do estado de “presa”, apesar de seu status de “recém-conversos”. Porque se a lei islâmica não assumiu qualquer forma de discriminação relacionada ao que seria chamado de “raça” na época, os árabes se sentiram à vontade com o espírito do texto.
Foi assim que o marroquino Ahmed al-Wancharisi afirmou que “apenas um incrédulo pode ser reduzido à escravidão … Mas se houver alguma dúvida sobre a data em que um homem se tornou escravo e se converteu ao islamismo, não se pode questionar sua venda ou posse“. Ele acrescenta que “a conversão ao Islã não necessariamente leva à libertação porque a escravidão é uma humilhação devido à incredulidade presente ou passada“. A maioria destes escravos, no entanto, foi designada para tarefas domésticas ou incorporada a corpos reais do exército. Adultos “completos” eram empregados em trabalhos domésticos e de guerra, em minas de sal e ouro e até em propriedades agrícolas. Quanto às “fêmeas”, os haréns estavam cheios delas, pelo menos com as mais bonitas. Aquelas desprovidas de encantos se juntaram ao rebanho de pastores.
É um fato, que desde tempos muito antigos, os eunucos eram mercadorias procuradas no mundo árabe. Primeiro, houve jovens escravos (europeus) que foram levados da Espanha para amputação privando-os de sua virilidade. A lei do Alcorão proíbe os verdadeiros crentes de praticar a operação em pessoa, era a prerrogativa de um “povo primo”, isto é, os judeus. Logo depois, chegou a vez dos meninos do continente negro sofrerem o mesmo ataque. Suas chances de sobrevivência eram mínimas, a castração levava a morte de 70 a 80% dos “pacientes”, um verdadeiro genocídio. Além disso, se há muitos descendentes de negros em terras muçulmano-árabes, isso é uma exceção. Devem sua existência ao desejo dos antigos mestres de aumentar seu “gado” a baixo custo e para fins essencialmente práticos.
Bestialização e mutilação
Desde o início do comércio oriental de escravos, os muçulmanos árabes decidiram castrar os negros para evitar que se reproduzissem. Estes desafortunados foram submetidos a terríveis restrições. Sobre o assunto, comentários e testemunhos oculares atestam o tratamento abominável que os árabes reservavam para os cativos africanos, em suas sociedades escravistas, cruéis e particularmente desdenhosas para com os negros. Sobre a exploração desavergonhada dos povos africanos desde o século XVII – essa exploração foi motivada por razões essencialmente econômicas e “sanitárias” – os europeus escravizaram negros, primeiramente por meio de Veneza e Bizâncio, portugueses e ingleses vieram depois, seguidos de perto pelos franceses e espanhóis. Os europeus substituíram os árabes-muçulmanos em sua prática de comércio de escravos, e não instituíram esse sistema.
Como Fernand Braudel apontou, o tráfico de escravos não foi uma invenção diabólica da Europa. São os muçulmanos árabes que estão na origem dela e a praticaram em grande escala. Se o tráfico no Atlântico durou de 1660 a 1790, os muçulmanos árabes atacaram os negros do sétimo ao vigésimo século. E do sétimo ao décimo sexto século, durante quase mil anos, eles foram os únicos a praticar o tráfico de escravos. Além disso, a estagnação demográfica, as misérias, a pobreza e os atuais atrasos de desenvolvimento do continente negro não são o único fato das consequências do comércio triangular, como muitos imaginam, longe disso.
Apesar de guerras tribais e represálias sangrentas terem ocorrido ao longo dos séculos, entre tribos e até mesmo entre grupos étnicos africanos, tudo isso permaneceu modesto em muitos aspectos até a chegada de “visitantes” árabes-muçulmanos. Os historiadores, em sua maioria, são formais: bem antes do Islã, o tráfico de escravos orientais, que foi praticado pela primeira vez contra os eslavos (europeus: falamos de oito a dez milhões de vítimas) acabou por se dirigir a facilidade, ou seja, aos povos do continente negro. Pessoas que os muçulmanos árabes consideravam ingênuos e sem defesas eficazes. E se houve grandes movimentos abolicionistas no Ocidente durante o tráfico do Atlântico, não há vestígios de iniciativas equivalentes no mundo árabe-muçulmano.
O historiador inglês Reginald Coupland argumenta que o “total de africanos importados ao longo dos séculos deve ser prodigioso“, que muitos autores argumentam que não pode ser suspeito de viés. A Jihad (a guerra santa contra os incrédulos) ajudou árabes, turcos, persas e comerciantes de escravos de Magrebe a “sangrar” o continente negro, e isso por mais de treze séculos. A expansão árabe foi comparada por Ibn Khaldum: “para sentinelas que não poupam nem mesmo as florestas“. Esse cientista árabe assegurou que seus compatriotas, como Átila, semearam a ruína e a desolação por onde passaram, da terra dos Negros para as bordas do Mediterrâneo. Com a chegada dos árabes, as técnicas de “coletas bélicas” na África foram progressivamente estudadas e bem entendidas.
Esse comércio de pessoas entre certos monarcas e os caçadores de homens se tornará florescente. Um certo número de capangas e intermediários vendia descaradamente aos árabes, os prisioneiros de quem eles conseguiam um bom preço. O homem para seus semelhantes era então considerado uma “mercadoria boa”. Uma dessas “técnicas de caça” consistia nisso: depois de circundar uma aldeia no meio da noite, os atacantes eliminavam o líder e seus apoiadores. Os aldeões, surpresos em seu sono, eram atraídos para fora a fim de se defender, os homens velhos e mulheres era massacraram no final da luta; o resto era amarrado e destinado a escravidão e a uma longa jornada. Aqueles que conseguiam escapar eram perseguidos por mastins treinados para perseguir homens.
Os fugitivos às vezes escapavam para a savana, na qual os traficantes ateavam fogo para desalojá-los. Então, os sobreviventes iniciavam uma longa marcha até a costa ou o norte da África, através do deserto implacável. Perdas estimadas em cerca de 20% do “rebanho” foram inevitáveis. A progressão de caravanas de cativos através deste oceano de areia às vezes durava meses. Imaginem suas condições de sobrevivência, os escravos adultos andavam com um colar de madeira durante o todo o dia sem descanso. Agora imaginem o frio das noites, o calor dos dias, a fome, os insultos e o chicote, as doenças …
O explorador Gustav Nachtigal nos traz um testemunho pungente em estilo barroco:
“As crianças pobres dos países negros parecem encontrar a morte aqui no último estágio de uma longa, desesperada e dolorosa jornada. A longa viagem realizada com comida insuficiente e escassa água, o contraste entre os ricos recursos naturais e a atmosfera úmida de sua terra natal, e o ar seco e arejado, por outro lado. A fadiga e as privações impostas por seus senhores e pelas circunstâncias em que se encontram arruinaram gradualmente sua força jovem. A memória da pátria desaparece ao longo do caminho, o medo de um futuro desconhecido, a jornada sem fim sob os golpes, a fome, a sede e o esgotamento mortal, paralisaram suas últimas faculdades e recursos de resistência. Se as pobres criaturas não têm forças para se levantar e andar novamente, elas são simplesmente abandonadas e suas mentes desaparecem lentamente sob o efeito destrutivo dos raios do sol, a fome e a sede …”
Primeiro despovoamento de um continente
Após a passagem dos invasores árabes, Henry Morton Stanley afirma que em algumas partes da África, havia pouco mais de 1% da população. “O sangue negro corre para o norte, o equador cheira a um cadáver“, escreveu o famoso explorador. Finalmente, na chegada, a “mercadoria” era oferecida aos mercados que as revendiam. Vamos ver o que uma testemunha europeia disse sobre essas vendas de escravos:
“Há duas ou três ruas perto de Cancalli (distrito do Cairo), onde os pobres escravos são vendidos, onde eu vi mais de quatrocentos, a maioria dos quais são negros: eles roubam fronteiras de Pretre-Jan?
Eles os organizam em ordem contra a parede, todos atados, suas mãos amarradas para trás, para que possam ser melhor contemplados, e ver se eles têm algum defeito, e antes de irem ao mercado, eles os fazem ir ao banheiro, são pintados e seus cabelos são penteados, para vendê-los melhor, são colocadas pulseiras e anéis em seus braços e em suas pernas, pingentes em suas orelhas, em seus dedos e no final das tranças de seus cabelos; e desta maneira são levados ao mercado… As meninas, ao contrário dos meninos têm apenas um pequeno pano para cobrir suas partes íntimas: é permitido a todos virá-las para frente e para trás, fazê-las andar e correr, falar e cantar, mostrar os dentes, sentir se sua respiração não é fétida: e como se estivessem prontos para a compra, se é uma menina, eles a afastam um pouco à parte, que eles cobrem com uma folha grande, onde ela é amplamente vistoriada na presença do comprador por matronas para averiguar se ela é virgem. Sendo assim, vale mais”.
Chegados em terras árabes muçulmanas, os cativos africanos iriam se revoltar. Na Mesopotâmia, uma considerável massa de cativos negros foi importada. Esses homens chamados Zendes eram principalmente da África Oriental. Eles foram designados para construir cidades como Bagdá e Basra. Isso no vasto contexto de um tráfego que prosperaria por mais de um milênio. Os Zendes, considerados submissos pelos árabes, tinham a reputação de se satisfazer rapidamente com seu destino e, portanto, eram particularmente destinados à servidão.
Assim, a ascensão do comércio escravista transaariano e oriental também foi inseparável da do racismo. Desde os primórdios dos tempos o racismo, tem sido um meio simples e basicamente eficaz de negar a dignidade humana daqueles a quem se deseja escravizar. Os árabes usaram a palavra Zende (também se escreve Zandj ou Zenj) em tom pejorativo e desdenhoso: “Famintos”, disseram eles, “Zende rouba; saciado, o Zende viola”. Os negros eram designados para as tarefas mais repulsivas. Estagnados em seu local de trabalho em condições miseráveis, eles recebiam como alimento alguns punhados de semolina e tâmaras. Os africanos, no entanto, logo iriam libertar o seu ódio com o objetivo de destruir Bagdá, o símbolo da cidade de todos os vícios. Armados com tacos ou enxadas simples e formados em pequenos grupos, eles se rebelaram no ano de 689. Essa primeira insurreição ocorreu durante o governo de Khâlid ibn ‘Abdallah, sucessor de Mus`ab ibn al-Zubayr.
Os rebeldes que se organizaram conseguiram posteriormente obter armas. Eles se fortificaram em acampamentos montados em lugares inacessíveis. E destes diferentes pontos, eles lançaram ataques. Um grande número de emboscadas e batalhas se transformará em vantagem. Mais tarde, eles conseguiram tomar as principais cidades do baixo Iraque e do Khuzistão, como al-Ubulla, Abbadan, Basra, Wasit, Djubba, Ahwaz, etc. As tropas abássidas foram, no entanto, capazes de reocupar sem dificuldade todas as cidades que os Zendes haviam tomado, saqueado e depois abandonado. Os Zendes acabaram sendo derrotados, aprisionados, escravizados ou decapitados e seus cadáveres pendurados em forcas. Isso não os dissuadirá de fomentar uma segunda revolta melhor organizada. Esta insurreição ocorreu cinco anos depois, no ano de 694.
Está rebelião parece ter sido mais importante que a primeira e, acima de tudo, melhor preparada. Desta vez, os Zendes juntaram-se a outros desertores negros dos exércitos do califa, de escravos de Sindh na Índia, e outros de dentro do continente africano. Os insurgentes inicialmente infligiram uma forte derrota ao exército do Califa de Bagdá antes de serem derrotados. Os exércitos árabes foram, no entanto, forçados a se moverem duas vezes para esmagá-los. Quanto à terceira revolta Zende, ela é a mais famosa e a mais importante. Ela sacudiu o Iraque e o Khuzistão muito duramente, causando enormes danos materiais e centenas de milhares de mortes ou mais de dois milhões de acordo com algumas fontes.
A revolta dos condenados da terra
Em 7 de setembro de 869, sob as ordens de um líder carismático, Ali Ben Mohammed apelidado de Sâhib al-Zandj, que significa “Mestre dos Zendes”, os africanos se levantaram. O homem era de origem bastante obscura – mas obviamente conseguira abordar as classes dominantes de seu tempo. Ele também era um talentoso poeta, educado, versado nas ciências ocultas e socialmente engajado em ajudar crianças. Ele os ensinou a ler e se familiarizar com assuntos como gramática e astronomia. Ali Ben Mohammed já fomentara várias revoltas em outras partes do país, antes de suceder, à frente dos Zendes, a maior insurreição de escravos da história do mundo muçulmano. De fato, o período foi favorável à expansão e sucesso dos insurgentes.
As autoridades centrais não puderam, por razões internas e externas, combatê-los eficazmente. Bagdá, a capital, era indescritivelmente anárquica, após o assassinato do califa al-Mutawaki. Os oficiais turcos da guarda empoçaram, entre 870 e 874, quatro califas sem poder real e inteiramente à sua mercê. Em muitas províncias, as pessoas pobres e frequentemente famintas desafiavam rotineiramente a autoridade dos governadores. Quanto às regiões situadas nas terras altas do Curdistão, no sul do Irã e no Golfo de Omã, elas simplesmente se declararam independentes do califado e lideradas pela dinastia Ya qab al-Saffas (863-902).
Também deve ser dito que a área do pântano do Baixo Iraque, chamada Khuzistão, era quase impenetrável. Seus numerosos canais impediam o acesso a grandes edifícios capazes de transportar tropas. Esta área também oferecia refúgio aos rebeldes, que podiam atacar com a mesma facilidade com que ganhavam na frente de um adversário desnorteado. Ali Ben Mohammed não era Zende, mas um providencial aliado dos africanos. Ele era um líder árabe que exigia a igualdade de todos os homens, sem distinção de cor. Foi, portanto, sob o seu comando que os Zendes se levantaram novamente, no que a memória árabe mantém como a terrível guerra dos Zendes. Eles pilharam muitas cidades, massacraram os habitantes e derrotaram as tropas enviadas para combater a insurgência.
Um forte exército de Bagdá sob o comando do general Abu Mansur foi cortado em pedaços por africanos. Eles também abateram os quatro mil homens do exército comandados pelo general turco Abu Hilal. Mil dos seus soldados foram massacrados enquanto muitos prisioneiros foram levados de volta pelos Zendes para serem mortos. Os insurgentes apreenderam 24 navios oceânicos voltando a Basra. Essa revolta acabou sendo popular. Os Zendes conseguiram ganhar a simpatia de muitos camponeses livres e até peregrinos. Depois de serem libertados, organizaram um embrião estatal com uma administração e tribunais. Nesta nova entidade autônoma, eles aplicaram a lei de retaliação aos árabes derrotados e soldados turcos, que foram escravizados e traficados.
Os Zendes atacaram de surpresa e fizeram com que Basra caísse em três frentes na sexta-feira, 7 de setembro de 871, no momento da oração. Eles então estabeleceram sua capital na cidade vizinha de Al-Muhtara, a sede de seu comando militar e administrativo. Acreditando estarem seguros emitiram sua própria moeda e organizaram seu estado enquanto tentavam estabelecer relações diplomáticas com outros movimentos contemporâneos como os de Karmate Hamdan Karmat e Saffarids de Ya’kûb ibn al-Layth. Os Zendes resistiram por quase quatorze anos, antes de serem esmagados em 883, por uma coalizão de tropas enviadas pelos califas locais. Pois, eles haviam se tornado a principal preocupação do califado de Bagdá. Este último decidirá agir metodicamente, devastando tudo em seu caminho para forçar os Zendes a se trancarem na área do canal.
Eles então passaram por um longo cerco liderado por al-Muwaffak e seu filho, Abl’Abbâs (o futuro califa, al-Mu’tadid). Apesar da feroz resistência por mais de dois anos de cerco, os africanos gradualmente recuaram. Ali Ben Mohammed, proclamou Mahdi, descendente do profeta, e acabou por estabelecer estruturas muito hierárquicas e particularmente desiguais. Rompendo com os princípios que demonstrou no início, Ali Ben Mohammed fez dos negros as principais vítimas relegadas ao fundo da escala social. De fato, até a abolição total da escravidão no século XX, certos países ligados ao Islã ainda a praticavam como a Arábia Saudita que aboliu esse sistema em 1962.
Certamente muitos filhos ou netos de concubinas negras, se destacaram à frente dos exércitos árabes ou até mesmo do primeiro califado, como Omar e Amr Ibn al As, os conquistadores do Egito. E o famoso eunuco núbio Abū’l-Musk Kafur, que tornou-se regente do Egito no século X. Mas para ilustrar o desprezo que inspirou seus compatriotas, o grande poeta árabe Al Mutanabbi dedicou-lhe uma sátira ofensiva:
Para um escravo malvado assassinar seu mestre
Ou traí-lo, deveria ele ser treinado no Egito?
Lá, o eunuco se tornou o líder dos escravos em fuga,
O homem livre é escravizado; nós obedecemos o escravo.
O escravo não é um irmão para o homem livre e piedoso
Mesmo que ele tenha nascido em roupas de homem livre.
Não compre um escravo sem comprar um porrete
Porque os escravos estão infectados e não servem para nada.
Eu nunca pensei em viver para ver o dia
Onde um cachorro me machucaria e seria elogiado
Nem imaginei que iria desaparecer
Homens dignos do nome
E subsistir a imagem do pai da generosidade
E veja esse negro com seu lábio de camelo furado
Obedecido por esses mercenários covardes.
Quem já ensinou nobreza a este negro eunuco?
Seus parentes “brancos” ou seus ancestrais reais?
Ou seu ouvido sangrando nas mãos do escravo,
Ou o seu valor, porque nós o rejeitaríamos?
Deve ser desculpado por qualquer abatimento
Mas uma desculpa é às vezes uma reprovação
E se é assim porque os garanhões brancos
São incapazes de nobreza, então e quanto a
Eunucos pretos?
E o poeta acrescenta:
Aquele que te abraça por sua palavra não se parece com aquele que pretende sua prisão
A morte do escravo negro é limitada por seu sexo fedorento e seus dentes
E se você tiver dúvidas sobre sua pessoa e sua condição
Veja qual é a sua raça.
No Iraque, no entanto, apesar de seus princípios igualitários mostrados no início da insurreição, Ali Ben Mohammed – sem dúvida impulsionado pelo desprezo pelos negros – faria com que em suas riquezas e títulos fossem reservados para seus companheiros brancos. Isso explica porque os Zendes acabaram não sabendo mais, por que eles estavam lutando. As tropas inimigas receberam os desertores de braços abertos, com honra, enchendo-os de presentes à vista dos sitiados. E para minar ainda mais a moral dos Zendes, enviaram para suas defesas, barcos cheios com as cabeças de seus companheiros mortos. Finalmente, depois de muitos assaltos da coalizão de forças, Ali Ben Mohammed, o líder dos Zendes, foi morto.
Todos os seus funcionários e oficiais também foram mortos ou capturados e transferidos para Bagdá, onde foram decapitados dois anos depois. A maioria dos combatentes da resistência africana preferiu a morte ao invés da rendição. Muitos que foram tomados vivos seriam abatidos um a um, enquanto outros sofreram torturas atrozes. No entanto, al-Muffawaq, irmão do califa al-Mutamid, que há tanto tempo lutava contra os Zendes, decidiu perdoar muitos deles e incorporá-los aos exércitos do califa, prestando assim tributo à bravura e espírito de luta dos africanos. Ao contrário das teses de alguns autores, essa guerra dos Zendes não foi de forma alguma uma cascata de confrontos obscuros, pouco conhecidos e sem data. Essa onda de revolta contra a escravidão, que durou quatorze longos anos, entre 869 e 883, teria feito no Iraque, de acordo com historiadores árabes, entre 500.000 e 2 milhões de vítimas.
O resultado desse conflito mortal foi o desaparecimento dos pátios que testemunharam o martírio dos escravos negros, com o abandono da dessalinização das terras do pântano. E depois disso, quase nunca houve colheita de cana-de-açúcar nessa área. De fato, a escravidão dos africanos neste país foi um evento desastroso. Essas insurreições permanecem vivas na memória árabe, já que esses eventos minaram seriamente os próprios alicerces do que restou do Império Mesopotâmico e marcaram o início do seu declínio, muito antes do golpe de misericórdia, que seria usado pelos invasores mongóis no século XIII.
No que diz respeito ao tráfico para os países árabes e muçulmanos, foi o mais longo da história, já que se deve lembrar que a Arábia Saudita e a Mauritânia aboliram “oficialmente” a escravidão respectivamente apenas em 1962 e 1980, muito depois da Tunísia e da Argélia (1846) e dos países da Europa. Pode-se argumentar que o comércio de escravos e as expedições bélicas dos muçulmanos árabes foram, para a África negra e ao longo dos séculos, muito mais devastadores do que o tráfico atlântico de escravos. No comércio de escravos transaariano e oriental, os árabes destinaram a maioria das mulheres negras aos haréns e castraram os homens, como vimos, por processos muito rudimentares que causaram considerável mortalidade. Suas chances de reprodução foram assim aniquiladas.
Para os sobreviventes, todos os que, tendo atingido uma certa idade, foram mortos. Assim, apesar das enormes massas de populações importadas, apenas uma minoria de africanos pode se perpetuar no mundo muçulmano. Isso explica por que os descendentes de escravos africanos quase desapareceram sem deixar vestígios. Eles são hoje quase inexistentes no Oriente. É certo que a prática generalizada de castração é um dos principais fatores. Quanto às condições de vida da maioria dos sobreviventes, um viajante inglês relata que “eles estavam tão escaços, que cinco a seis anos foi o suficiente para suprimir toda uma geração de escravos“. Curiosamente, muitos são aqueles que desejam ver esse genocídio coberto para sempre com o véu do esquecimento, muitas vezes em nome de uma certa solidariedade religiosa ou política.
É por isso que a maioria dos historiadores africanos ou outros restringiu o escopo de suas pesquisas sobre o comércio de escravos ao praticado pelas nações ocidentais. Nosso propósito não é moralista, porque como podemos comparar o que foi, dadas as mentalidades e sensibilidades daquele tempo, com o nosso presente. O desejo é que as gerações futuras sejam informadas dos acontecimentos históricos e da dimensão do comércio de escravos transaariano e oriental. E que as nações árabes muçulmanas finalmente se debrucem sobre esta página sinistra de sua história, assumam sua total responsabilidade, e um dia pronunciem seu arrependimento como as demais e que isso seja também abordado nos livros de história.
Este artigo foi publicado pelo site Africultures – Les mondes en relation em parceria com a Cultures Sud
Na ocasião do lançamento de um movimento, para forçar os países árabes-muçulmanos a reconhecer, como a França fez, suas responsabilidades na escravidão dos povos negros, um comício aconteceu em frente à embaixada do Marrocos em 2 de dezembro de 2012, por iniciativa da Fundação do Memorial do Traité des Noirs.
Este texto foi traduzido e levemente adaptado (para um melhor entendimento de certos termos) de ‘Le crime des pays arabo-musulmans envers l’Afrique noire‘. Acesso em 12 de Setembro de 2013.
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