Versão portuguesa do artigo The “True” Islam, escrito por James V. Schall, S. J., e publicado em The Catholic World Report, em 24 de janeiro de 2016.
O artigo contém uma discussão interessante sobre o islamismo e as diferenças fundamentais com as bases da civilização ocidental.
“Os escritos de Rémi Brague (vencedor do Prêmio Ratzinger de 2012) sobre o Islã oferecem o tipo de análise firme e detalhada sobre o assunto.”
I.
Lumen Gentium, Constituição dogmática sobre a Igreja do Vaticano II, afirma que os maometanos “professam a sua fé como a fé de Abraão, e como os cristãos adoram o Deus único e misericordioso, que vai julgar os homens no último dia”. À primeira vista, essa afirmação parece amigável e leva a crer que a “fé” dos muçulmanos é semelhante à cristã, ou seja, que ambas as religiões estão “de acordo” sobre um juízo final e um Deus misericordioso, que é um único. Esta forma de colocar a questão argumenta uma origem comum ao judaísmo, cristianismo e islamismo, todas oriundas de Abrão e tendo cada uma das quais “aparecido” na história em diferentes momentos-Novo Testamento alguns 1.200 anos depois de Abraão e o Islã alguns 700 anos depois do tempo de Cristo.
Mas quando examinamos o que cada tradição (cristã e islâmica) entende por unidade, culto, julgamento e misericórdia, constatamos que elas não querem dizer as mesmas coisas com as mesmas palavras. E o acordo assumido que Deus é um só fornece pouca base para um maior acordo sobre o que flui a partir dele. O Islã confronta a religião e a política com questões de vida e morte e nas suas atitudes diárias mostra que o conceito de Deus, unidade, culto, julgamento e misericórdia, diverge totalmente do conceito cristão, ou não veríamos como resultado deste conceito milhares de cristãos decapitados diante dos nossos olhos da maneira mais brutal. O grande Mosteiro de St. Elias perto de Mosul no Iraque, que data do 600s AD, foi recentemente não apenas destruído, mas pulverizado, não por qualquer motivo militar, mas para apagar qualquer sinal da presença cristã histórica lá. Esta é uma antecipação do que vai acontecer com outras igrejas e edifícios cristãos se esta expansão islâmica continuar.
Essas mortes e destruições são consideradas um julgamento, por isso é reivindicado, em uma sociedade que se recusa a aceitar a vontade de Allah como a norma de como viver. Também ouvimos de mulheres molestadas mesmo em frente de catedrais européias como se tais atos fossem “direitos”. De fato, as mulheres são consideradas as “causas”, porque não se trajam como a lei muçulmana exige em todos os lugares. As vítimas, assim, seriam as culpadas pelos crimes cometidos contra elas e não os criminosos que cometem os crimes, pois estes seriam os “verdadeiros crentes” a “serviço de Allah”.
Sabemos também da discriminação flagrante contra os não-muçulmanos em todas as terras muçulmanas. Mas, novamente, este é dito ser um “direito” de cada povo, decidir quem é ou não é um cidadão e quais são as suas leis e portanto, perante o pensamento muçulmano, estas atitudes não seriam atividades brutais ou injustificadas, mas sim corroboradas pela sociedade islâmica. Tais costumes, atos, comportamentos, sempre estiveram presentes, de uma forma ou de outra, desde que o Islã começou no século VII. Há uma consistência filosófica sobre eles. Há muitas maneiras de se chegar a um acordo com essa conduta permanente, no entanto, estão atualmente propostas para torná-lo menos violento. Muitos, inclusive o Papa Francis (Evangelium Gaudium # 253), sustentam que o “verdadeiro” Islã é “pacífico”; a “violência” é apresentada como uma aberração sem relação com o Islã, e não a norma.
Quando se trata de compreender as implicações desta filosofia islâmica, ninguém é mais perspicaz do que o filósofo e historiador francês, Rémi Brague, vencedor do Prémio Ratzinger de 2012, professor em Paris e Munique, e autor de livros como “A Lei de Deus”, a “Lenda da Idade Média” e o “Deus dos cristãos”. Em um ensaio na revista francesa, Commentaire (2015), intitulado “Sur le ‘vrai’ islam”, ele dirigiu-se a uma consideração feita pelo Papa Francisco de que o “verdadeiro Islã é uma religião pacífica”. Brague observou que nenhum papa é uma “autoridade” dentro do Islã para definir o que é o Islã.
Pode-se destacar, porém, que um papa é uma autoridade dentro do catolicismo. Nessa qualidade, ele tem a responsabilidade de identificar o que não é o catolicismo. Esta autoridade deverá incluir pronunciar-se sobre a compreensão do cristianismo encontrada no texto do Corão, assim como da Trindade e da Encarnação de Cristo são negadas no Corão.
Os islamistas e escolares afirmam que as escrituras judaico-cristãs são uma farsa, uma falsa interpretação de um Corão “original” que existiu apenas na mente de Deus antes do Corão ter sido escrito; portanto, o Corão seria o livro mais antigo.
Os papas raramente exercem esta responsabilidade que lhes cabe como autoridades católicas, a responsabilidade de defender a Trindade e a Encarnação de Jesus como verdadeira . O Papa Bento XVI, na “Aula de Regensburg“, abordou sobre a questão da violência recorrente proveniente de fontes islâmicas e fez pressão contra isso, mas o Papa Francisco em momento algum, fez o que lhe cabia como líder religioso católico: defender a Trindade e a Encarnação de Jesus como verdadeira frente aos islamistas e escolares islâmicos .
Para entender o que está em jogo, Brague propõe certas distinções que vou tentar explicitar de uma forma mais geral. Algumas questões sobre o Islã lidam com verdade, outras com a lei. No que diz respeito aos fatos, todas as seitas e movimentos dentro do Islã sunita, xiita, sufista, Wahhabi, mesmo quando entram em conflito uns com os outros, é devido a intenção de representar o “verdadeiro” Islã. Os chamados “terroristas” reivindicam, utilizando-se de provas do Corão e da história legítima, ser a voz real do Islã. Eles acusam aqueles que não seguem o seu exemplo agressivo de serem “traidores” do Islã. Aqueles muçulmanos que rejeitam a compreensão do Islã segundo a ótica do ISIS, não podem afirmar que a sua visão é a única visão legítima, pois sobre a questão de direito, muitas abordagens são igualmente possíveis.
Samir Kalid Samir SJ, em seus “111 Perguntas sobre o Islã“, observou que a violência é justificada tanto no texto e na tradição. Negar esta justificação da violência é ir contra e negar muitos pontos bem atestados no Alcorão e na história islâmica. Neste sentido, não se pode simplesmente dizer que o “verdadeiro” Islã não é violento. Tal afirmação não faz justiça à complexidade da questão.
II.
Quem tem autoridade, em seu próprio nome, para afirmar definitivamente que é o Islã? Certamente um papa por não ser uma autoridade oficial designada para resolver as questões de fato e de princípio sobre o Islã. Por isso, Brague defende que é importante se proteger contra a ambiguidade do termo “verdadeiro Islã”, principalmente quando se é um papa. Vale a pena examinar o que o termo “verdadeiro Islã”, pode significar. Qual é o significado da palavra “Islã”? Como o Islã pode ser considerado como uma “religião”, uma “civilização”, e uma “população”?
Como uma religião, o Islã significa abandonar por completo toda a sua vida nas mãos de Alá e se submeter aos desígnios deste. No Ocidente, o Islã se refere à religião pregada na Arábia por Maomé, no início no século VII. Mas os próprios muçulmanos consideram a sua religião é muito mais velha do que Maomé. Na verdade, é dito que o Islã é uma religião que veio diretamente de Deus, passando por nada, nem mesmo pela interpretação de Maomé.
Neste sentido, o autor do Corão é Deus e portanto o Corão é superior à Bíblia, pois esta última foi escrita por evangelistas que eram homens, ao passo que o Corão foi escrito por um Deus.
Como uma civilização, o Islã começou em um determinado momento e num determinado lugara, assim, os muçulmanos têm o seu próprio calendário que começa em 622, quando Maomé deixou Meca e foi para Medina. Dentro dos limites geográficos sob controle do Islã temos a área de “paz”. Fora isso, tudo está no domínio de “guerra”. Os ISIS ainda usam esta terminologia paz / guerra; outros tendem a usar termos como “terra de missão”. Mas todas aquelas pessoas na arena de “guerra” são consideradas como “inimigos” de Allah. Portanto, elas estão sujeitas à lei e vingança de Allah (Deus). Neste mundo, não há “inocentes”.
III.
A civilização islâmica inclui aqueles que não pertencem à religião muçulmana, mas vivem dentro de seu ambiente e por isso eles devem pagar um preço para serem deixados em paz (sob proteção); eles devem aceitar a cidadania de segunda classe. Muitos daqueles que, no início, eram de fato cristãos foram forçados a se converter ao Islã e por isso nas terras conquistadas pelo Islã, atualmente, a maioria é de muçulmanos, pois tais povos foram forçados à conversão e hoje a totalidade desses povos já trocou tanto de religião como de civilização. O renascimento moderno do Islã (Primavera Árabe), especialmente o seu nacionalismo (inspirado por tendências políticas ocidentais), também incluiu os cristãos que esperavam que um “estado” moderno fosse dar-lhes status e igualdade independente da lei islâmica.
No entanto, os poucos cristãos restantes, estão sendo expulsos de terras muçulmanas que fizeram a revolução na Primavera árabe. O ocidente faz a distinção entre o cristianismo (uma religião) e a cristandade (uma cultura), mas esta distinção não existe no Islã, e se feita é inclusive considerada blasfêmia, e é isto que precisa ser entendido pelos ocidentais que não são muçulmanos.
Neste sentido, não se pode facilmente distinguir entre o “verdadeiro” Islã como uma religião daquele Islã que é uma civilização. Ao examinar a noção de um “verdadeiro” Islã, Brague espera mostrar a dificuldade em usar essa frase de tal forma a ser capaz de dizer que é ou não é, em princípio, “pacífica”. Uma coisa é entender o Islã como o entende seus seguidores, outra maneira de ver o Islã é a partir da perspectiva de especialistas acadêmicos não-muçulmanos usando seus próprios métodos científicos. Tais métodos científicos só podem mostrar o que os métodos permitem. A crença, como tal, não é um objeto direto da investigação científica.
Tudo está aberto a múltiplas interpretações. É por isso que o Islã parece tão errático. Na verdade, é a partir deste conjunto de práticas contraditórias e crenças no Corão e na história islâmica que os próprios estudiosos islâmicos tiveram que desenvolver uma “teoria” que justificasse estes fenômenos contraditórios e, assim, com isso, pudessem salvar a religião da sua incoerência evidente. Esta é a origem real do “voluntarismo” que subjaz vistas do cosmos, do homem e de Deus. Para o voluntarista, Allah pode exigir o oposto do que ele ordenou antes, ou ele não seria todo-poderoso. E a vontade de Alá está na origem de toda a realidade.
Com esta afirmação de que Allah é todo poderoso e que sua “vontade” é soberana, explica-se todo o contraditório que existe no Corão e na religião islâmica, pois, a contradição é a regra e se justifica pela vontade de Allah, sem mais explicações, ou análises, e ou questionamentos. O “voluntarismo” é a base da teoria das “duas verdades” que permite a revelação e a razão mantenham pontos de vista contraditórios. O Corão foi pensado e escrito por Deus em pessoa e esta origem não deixa margem para uma interpretação coerente. “Interpretar” isso implicaria que uma autoridade humana fosse capaz de ser Allah, o que seria uma blasfêmia.
O Corão também relativiza o Antigo e o Novo Testamentos como documentos defeituosos que foram roubados ou mal interpretados a partir do texto original do Corão que estava localizado na mente de Deus. Tal comentário de escolares islâmicos de de fiéis muçulmanos é uma inversão, o oposto, do que realmente aconteceu, portanto um revisionismo histórico para justificar e corroborar a supremacia islâmica (sempre feito pelos islamistas). O Corão é em si uma seleção e interpretação de fontes judaicas e cristãs anteriores, mas aí os islamistas desenvolveram essa distorção da realidade e da história para que com essa “teoria desenvolvida” justificassem que o Corão é anterior ao Torah e à Bíblia, e nesta época existia na mente de Deus que séculos mais tarde ditou seus pensamentos para Maomé. Esta visão tornou-se o dispositivo para economizar a incoerência islâmica.
Com essa “teoria” se afirma que um Islã puro ou autêntico podia ser encontrado antes das influências judaicas e cristãs e que estas de forma alguma influenciaram a criação do Islã e que o Corão não seria uma seleção do de conquistas militares do Oriente Próximo, assim como uma seleção do Velho e do Novo Testamento.
O Islã não sustenta que inicialmente apareceu com a primeira pregação de Maomé, em vez disso, o Islã pensa em si como primeiro enraizada na mente de Deus, antes da história e é por isso que afirma ser mais velho do que o judaísmo ou o cristianismo. Já “existia” inalterada na mente de Deus antes mesmo da criação deste mundo terreno. Neste ponto de vista, o judaísmo e o cristianismo são corrupções do Islã original, e não vice-versa. Assim, se este ponto de vista sobre a origem do Islã na mente de Deus é verdade, todo mundo nasce um muçulmano. Se alguém na história não é um muçulmano, é porque ele foi corrompido pelos pais, escolas ou outras religiões. É por isso que o Islã não tem por si mesma quaisquer datas início oficial da história.
Ao estudarmos a história da humanidade, porém, temos uma imagem do “real”, sobre o Islã e sobre as civilizações e as nações. Ao se estudar sobre Maomé, não se sabe quando ele apareceu pela primeira vez. Assim, Robert Spencer escreveu um livro intitulado “Será que Maomé existiu?” (ISI Books, 2012) .As muitas biografias de Maomé repetem os mesmos contos. O certo é que os arqueólogos nunca foram autorizados a investigar Medina ou Meca e portanto não se tem provas da existência de Maomé. E é baseado nisto que temos a visão de Brague, de que não podemos facilmente chegar a um “verdadeiro” Islã.
O Islã tem um verdadeiro talento tanto para empréstimos quanto para se apoderar de feitos que não lhe pertencem. A tensão entre o Islã como uma religião e Islã como uma civilização pode ser grande. O governo e a religião em diferentes estados muçulmanos normalmente chegam a algum tipo de harmonia e trabalham no sentido de se reforçar mutuamente. A missão de submeter o mundo a Deus e, dentro dessa sujeição, de ter seu governo e seu lado religioso em harmonia, é uma esperança prevalente em todo o Islã.
IV.
E quanto a uma reforma em si do Islã para suavizar seu ímpeto violento? Robert Reilly, numa carta recente ao Wall Street Journal (05 de novembro de 2015) observou que esta “reforma” é o que agora já existe no Islã. Mudança e Reforma eram coisas constantes em ambos o protestantismo e o catolicismo, Brague observa. Mas no Islã, as primeiras conquistas militares não eram muito diferentes das conquistas atuais, pois os terroristas islâmicos de hoje recuperaram esses métodos anteriores utilizados nos primórdios do Islã sob o comando de Maomé. As terríveis cenas de conquistas muçulmanas são aceitas como fatos da história de Maomé e portanto se aplica à história de vida de cada muçulmano fiel, pois o profeta é o modelo, um bom exemplo a ser seguido. Assim, pode-se invocar os fatos e atos do Profeta, atualmente, no século XXI, pois o profeta é um escolhido por Deus e fez o que fez a mando de Allah.
A justificativa de bombistas suicidas pode ser citada pelo próprio Maomé, que deu conselhos sobre como entrar no céu. Este é o fundamentalismo, os fundamentos do que é realmente o Islã, pois estão presentes desde o início do Islã.
Podemos considerar o Islã, como uma alternativa, de um movimento puramente espiritual? Obviamente que não ! A tradição Sufi existe no Islã; é espiritual. Mas a pergunta na mente de Brague é esta: Será que é mais representativo do “verdadeiro” Islã do que as outras visões do mesmo assunto? Estudiosos ocidentais muitas vezes consideram esse “Islã espiritual” como um “Islã legal”, e o “Islã fundamentalista” como algo a se menosprezar, mas os próprios muçulmanos não costumam considerar o “Islã místico (espiritual)” como um “bom”. Dentro do Islã, há uma tradição de oposição a ele e seus seguidores são considerados infiéis. Esta tradição mística tem sido limitada a pequenas seitas consideradas uma “aberração moral” dentro da ideologia islâmica.
E quanto a tolerância? Suponha que os seguidores do Islã, as pessoas, desejem uma multiplicidade de ideias. A estrita observância da lei impediria qualquer expressão de dissidência em público, pois a religião inclui uma legislação pública e a separação da mesquita e Estado não é concebível. E é com este conceito que o Islã entra na Europa, como uma civilização em que essas relações de religião e política já estão incluídos e são indissociáveis.
O problema surge quando pensamos que estes pontos da lei muçulmana (Lei Sharia) são meramente questões do nosso direito civil. Os muçulmanos consideram a Lei Islâmica ou Lei Sharia a Lei inquebrável de Deus. Assim, um “verdadeiro” muçulmano, diante de um estado direito secular ocidental, tem de escolher entre um costume mutável e a Lei de Deus contida no Corão. Ou seja, ele não pode estar em paz em qualquer sociedade que não estabelecer a Lei do Islã como sua lei civil. Assim, no final, parece claro que o “verdadeiro” Islã é realmente uma religião “pacífica” somente quando ele atingiu o controle político e religioso da Lei que rege nossos pensamentos, ações e sistemas políticos.”
Sobre o autor, James V. Schall, S. J.
James V. Schall, S. J. ensinou filosofia política na Universidade de Georgetown por muitos anos até recentemente se aposentar. Ele é o autor de numerosos livros e inúmeros ensaios sobre filosofia, teologia, educação, moralidade, e outros tópicos. Seu livro mais recente é http://www.ignatius.com/Products/RP-P/reasonable-pleasures.aspx?=cwr (Ignatius Press). Visite o site, Another Sort of Learning, , para saber mais sobre seus escritos e trabalho.
**agradecimentos a Cláudio M. C. pela sugestão do texto, e a A.L. pela versão em português.
\Opinioes-O verdadeiro isla – James V_ Schall, S_ J
Oliveira da Figueira diz
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